Ghost Dog - samurai em estado industrial


Forest Whitaker (Ghost Dog), no filme Ghost Dog - A Via do Samurai, realizado por Jim Jarmusch, 1999.
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A cidade – imaginária, mas realista ao ponto do reconhecível.
Pelas placas das matrículas, estamos no “the industrial state”. Podem ser as ruas mais decadentes de uma cidade como Nova Iorque. O herói – imaginário, um idealista. Prático e inventivo nas suas artes do crime. Forest Whitaker no seu melhor. Tamanho urso preto, solitário, melancólico, rápido no engenho e na reacção; mas de natureza lenta, como grande animal muito descontraído pela ausência da noção de eu, cujos membros revelam a maleabilidade resultante do equilíbrio entre o relaxamento e a tensão – despreocupados, mas alerta. Só um ser humano que se tenha despojado da autocracia do ego conseguirá tal façanha.
Ghost Dog é o nome do protagonista. Num diálogo hilariante entre três mafiosos, mais além no filme, admirados com o nome bizarro do seu adversário, comparam-no quer às alcunhas dosrappers quer aos nomes dos índios.
O nosso herói devora a obra mestra japonesa Hagakure, segue mesmo a conduta moral de um samurai, mora numa barraca clandestina no terraço de um prédio com uma colónia de pombos-correio, através dos quais comunica com o gangster mafioso de quem se sente um leal servidor. Sempre calmo, pouco fala, tem um olhar doce e triste, amante dos animais, compreende a língua e o pensamento dos pombos e de outras aves e até de outros animais, como os cães, compreende até os pensamentos de outros humanos que não falam a sua língua – como o melhor amigo, Raymond, um havaiano vendedor de gelados que só sabe falar francês. Também compreende as crianças e torna-se amigo de uma menina chamada Pearline. Raymond, Pearline, as aves e uma cadela misteriosa que o costuma fixar na rua são os seus únicos amigos.
Ghost Dog é o fiel assassino contratado de Louie, um membro da mafia italiana ali do bairro. A forma como surgiu este vínculo entre ambos é dúbia e inquietante, e a presença do livro japonêsRashomon (entre outras referências literárias) no filme é um sinal para que prestemos atenção ao(s) momento(s) em que ambos se encontraram pela primeira vez. Ghost Dog era um adolescente a ser espancado por outros miúdos de um gang, num beco. Louie passa por acaso, detém-se, pergunta o que está a acontecer. O líder do grupo agressor vira-se para Louie. E é aqui que há um desdobramento de percepções. Ghost Dog recorda a cena da seguinte maneira: o agressor vira-se para Louie, depois pega na arma e aponta-a à cabeça de Ghost Dog; Louie, para proteger a vida do rapaz, atira sobre o outro e mata-o. Já Louie recorda a cena de uma forma diferente: o agressor vira-se para ele, aponta-lhe a arma e este, para se proteger a si próprio, atira para matar.
No fim do filme, Pearline, depois de ler o livro Rashomon, dirá que a história de que mais gostou foi a primeira, que se desfia em torno de um determinado acontecimento, que acabará por ser vários consoante os pontos de vista das diferentes personagens.
O filme é um poema do princípio ao fim, com pausas onde lemos e ouvimos excertos doHagakure, que lembram as pausas dos filmes mudos para as legendas. Há um contraste notório entre a equanimidade e o silêncio do nosso herói e a infantilidade e a barulheira do bando de mafiosos. Esta dicotomia cria diferentes ritmos no filme que traçam uma partitura encantatória.
Eis a situação que causará a peripécia: Ghost Dog é contratado para mais um serviço. Trata-se do assassínio de um membro da “família”, por este ter feito algo que não devia. No entanto, acidentalmente, no quarto com a futura vítima encontra-se uma jovem, nada menos do que a filha do boss mafioso. O homicídio é, porém, perpetrado, ela vê tudo, sentadinha na sua poltrona; troca de olhares com Ghost Dog, empresta-lhe o livro Rashomon declarando-se admiradora dos costumes do Japão antigo.
Ninguém esperava que fosse haver uma testemunha da cena sangrenta. Assim, toda a “família” resolve que Ghost Dog deverá morrer, para que o autor da encomenda deste crime permaneça incógnito.
E assim se desenrola a trama.
Ghost Dog, segundo a linha da narrativa e da referência literária paralela do Hagakure, faz o que faz por lealdade àquele que considera o seu senhor, para o proteger. No entanto, é sugerida outra possibilidade de interpretação, que eu adoptei: a sua vingança como um grito enorme contra a violência sobre seres mais puros, como os animais. Depois de ver os seus pombos trucidados e depois de um encontro acidental com caçadores furtivos de ursos (que matará por respeito ao urso que jaz no chão e por respeito a valores e princípios antigos que parecem esquecidos nesta era industrial e urbana), ele encarna o espírito de Némesis, a Vingança divina!
Quando parte para as suas missões, Ghost Dog rouba carros de alta gama com uma chave electrónica. Dentro dos carros – confortáveis, espaçosos, silenciosos – a caminho de mais uma cena de violência e morte (que nunca é dramática; mas rápida, seca e até bem humorada), põe o seu CD com música rap. Essas curtas viagens que têm por destino a morte de alguém são de uma beleza poética urbana como acho que nunca vi em nenhum outro filme. Avançando lentamente, olha para as ruas sujas, escuras, para as pessoas sós, bêbedas, para as entradas de bares e discotecas, para as mulheres decotadas, para a solidão do mundo. Estes são os momentos íntimos do seu diário de louco. Tal como as piruetas que faz com a arma, depois de atirar sobre alguém, antes de a colocar no bolso interior do casaco como se fora um sabre a ser solenemente reposto na bainha.
Ele é totalmente anacrónico, com toda a beleza angustiada, de lucidez incompreendida, dos seres desajustados do seu tempo.
Quem acabará por vencer será a mulher, aquela jovem que parecia tão frágil, filha do boss, e também ela seguidora de costumes ancestrais. Depois de o grupo inteiro de mafiosos ser eliminado por Ghost Dog, ela tomará as rédeas de um novo clã. Adivinhem qual a primeira ordem que dará.