morte a Venezia


Dirk Bogarde (Gustan von Aschenbach) no filme Morte a Venezia, realizado por Luchino Visconti, 1971.
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“Quem com os próprios olhos contemplou a beleza está condenado à morte.”
Platão.

“[…] prefiro contar fracassos, descrever as vítimas, os destinos esmagados pela realidade.”
Visconti, numa entrevista a L. Micciché, 1971.
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Este é daqueles filmes que não sabemos por onde pegar. É perfeito de forma e conteúdo. Baseado numa novela também ela quase perfeita. Cheio de reminiscências mitológicas e literárias de teor complexo e exigente, como o Fedro de Platão ou o Fausto de Goethe. Povoado de perfeitas interpretações. Com fotografia e música de cortar a respiração. Com uma história de vida reconhecível e ao mesmo tempo extraordinária. Provoca-nos um caos de sensações, sentimentos e estados: desde o estranhamento, ao maravilhamento, ao asco, à piedade, ao entendimento, à confusão, à dor, à empatia, à revolta, ao desejo de intervir!

Será possível alcançar a sabedoria através dos sentidos? Ou serão os sentidos não mais do que distracção? Será possível encontrarmo-nos através de sentimentos convencionalmente menos puros? O que são sentimentos menos puros? Qual é o alimento do génio? Porquê as divergências entre as nossas aspirações profundas, e estéticas, e a nossa vida? Como ser um refractário do medo? A beleza é criada pelo espírito ou pelo corpo? A arte é benévola ou demoníaca? Ou melhor, a real inspiração para a arte é benigna ou maligna?

Estas são apenas algumas das questões que servem de tema ao filme.

O adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler retumba sobre os nossos sentidos logo na abertura. Há uma névoa de melancolia derradeira desde o primeiro momento, enquanto acompanhamos o barco que leva Aschenbach a Veneza cortar o nevoeiro-lusco-fusco de um crepúsculo pouco sadio. Vêmo-lo sentado sem querer olhar o mar. A imagem que nos fica – sem que o seja realmente – é a de um idoso inválido numa cadeira-de-rodas, envelhecido, adormecido, agasalhado, triste, impaciente e desesperançado, de luvas cachecol chapéu (e chapéu de chuva) sobretudo.

O argumento é do próprio realizador, Visconti, baseado na novela de Thomas Mann, Morte em Veneza. Há algumas diferenças entre a fonte literária e o argumento do filme. Por exemplo, no livro, Aschenbach, o nosso herói, é um homem de letras, um escritor de renome. No filme, ele é um músico, um compositor. O próprio Thomas Mann baseou-se num compositor para criar a sua personagem, em Gustav Mahler. Daí que Visconti o tenha transformado naquilo que, na verdade, sempre foi: um músico. E daí que tenha escolhido Mahler como banda sonora do seu filme.

Mas vamos à sinopse: Aschenbach é um compositor de música clássica, tem 50 anos, sofre de problemas cardíacos. Tem levado uma vida austera, regrada e preventivamente afastada das distracções dos sentidos, e considera a sua arte uma arte racional. Sabemos por vários flashbacks do filme que: foi para Veneza porque um médico lhe receitou repouso em clima suave; foi casado com uma bela mulher, teve uma filha – que morreu; teve um caso de paixão não consumada por uma prostituta adolescente, muito parecida não só com a sua mulher mas também com o Tadzio; tem um grande amigo, Alfred, um pianista, uma espécie de contra-consciência de Aschenbach, que personifica o imenso conflito interior dessa alma inquieta – é ele que o confronta consigo mesmo e com as suas contradições.

Chegado a Veneza, encaminha-se para o Lido, onde ficará num cómodo quarto em hotel balnear, o “Grand Hotel des Bains”. Ali, só, taciturno e observador, encontrará uma família polaca que lhe desperta o interesse pelo decoro e afeição aristocrática que manifestam entre eles. E ali está Tadzio, que, imprevistamente, lhe começará a assombrar os dias e as noites, com a sua juventude, beleza, elegância clássica e ambiguidade afectiva. 

Em Veneza sopra o Siroco, um vento muito quente e seco que vem do deserto do Sara. Uma epidemia de cólera indiana grassa pelas ruelas da cidade, intensificada pelo clima abafado do Siroco. Cedendo à paixão, num misto de angústia e alegria, acabará por morrer contaminado quer fisicamente, pela cólera, quer animicamente, por um amor demasiado para a vida. Resumindo, com as palavras de Thomas Mann: "[...] aquela aventura do mundo exterior que se fundia obscuramente com a aventura do seu coração."

Entre muitas das diferenças que há entre a novela de Mann e o argumento de Visconti, há a da reciprocidade da relação entre Aschenbach e Tadzio, que é ausente em Mann. No filme, desde o primeiro momento em que se encontram, vemos Tadzio, esse efebo vaidoso e mimado, reconhecer e corresponder aos olhares do mais velho.* Sente-se uma espécie de capricho infantil na forma como o olha, mas também uma misteriosa maturidade demoníaca, consciente dos seus efeitos. 

Tadzio é uma personagem inesquecível. Um clássico que pode representar muitas coisas, daí que o considere um clássico. Uma delas é essa consciência e esse gosto malvado de afectar uma outra pessoa, sabendo à partida que a afeição nunca se concretizará.

Aschenbach surge no início do filme vestido de cores sóbrias,  triste e bem agasalhado e aproxima-se da morte vestido de branco, maquilhado e ridente à beira de um poço. As suas vestes brancas podem confundir-se com a espuma do formol que é usado para desinfectar a cidade. Quando o vi assim, tão branco, e com dentes tão brancos soltos sem pudor – eu não tive piedade, nem asco. Tive a alegria de ver um homem que parece estar a sentir pela primeira vez, a sentir desenfreadamente sem as rédeas do intelecto. E que precisava dessa experiência como aprendizagem e libertação, como há quem precise de retiros ou de auto-flagelações. Comparei-o ao formol, pela sua brancura, que é também a brancura de um regresso artificial à juventude, com a espuma dessa artificialidade  – que no seu rosto corresponde à espuma da maquilhagem. Que veremos escorrer, como a espuma do mar, sob um sol pouco misericordioso, no momento da morte, na praia.

Esta é uma espécie diferente de retiro espiritual. Aschenbach é um homem que precisa da arte e que sobrevive da arte, mas que nunca tinha encontrado a essência da arte, nem queria. No seu retiro em Veneza, descobriu o que seria viver verdadeiramente inspirado por uma arte que não é forjada   a beleza. E o seu coração não aguentou.

Às danças sensuais de Tadzio, Aschenbach responde, finalmente sincero: 

"Não deves sorrir assim! Não se deve sorrir assim a ninguém! Amo-te..."

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* “Paiderastia in the word that the Greeks themselves employed to refer to the sexual pursuit of ‘boys’ (paides, or paidika; Lat. pueri) by ‘men’ (andres, Lat. viri). Good-looking boys supposedly exerted a powerful sexual appeal that men, even when good-looking, did not. Accordingly, men were assumed to be motivated in their pursuit of boys by a passionate sexual desire (eros) which the boys who were the targets of that desire did not conventionally share, whence the Greek habit of referring to the senior partner in a pederastic relationship as a subject of desire, or ‘lover’ (erastes), and the junior partner as an object of desire, or ‘beloved’ (eromenos). A boy who chose to ‘gratify’ (charizesthai) the passion of his lover might be actuated by a variety of motives, including material gain or social climbing and affection, esteem, respect, and non-passionate love (philia), but – although a man might stimulate a boy sexually – neither sexual desire nor sexual pleasure represented an acceptable motive for a boy’s compliance with the sexual demands of his lover. Even pederastic relationships characterized by mutual love and tenderness retained an irreducible element of emotional and erotic asymmetry, as is indicated by the consistent distinction which the Greeks drew in such contexts between the lover’s eros and the beloved’s philia.”

in The Oxford Classical Dictionary, 1999.