Into the Wild


Emile Hirsch (Christopher "Alexander Supertramp" McCandless), no filme Into the Wild, realizado por Sean Penn, 2007.
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Digo que os estudantes não deveriam encenar a vida, ou simplesmente estudá-la, enquanto a comunidade os sustenta nessa dispendiosa brincadeira, mas seriamente vivê-la do começo ao fim. Como poderiam os jovens aprender melhor a viver senão tentando a experiência da vida de uma vez por todas? Parece-me que isso lhes exercitaria a mente tanto quanto a matemática.

Em vez de amor, de dinheiro, de fama, dá-me a verdade. 

Thoreau, Walden, ou a vida nos bosques, Antígona, 2009.
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Hoje é dia de ano novo tibetano, o ano do cavalo, que é por sinal o meu signo chinês. Por isso, considero uma bênção maravilhosa ter a oportunidade de meditar sobre este filme, de conteúdo tão significativo, num dia como o de hoje. Os budistas dizem que para encontrar a verdade última há que renunciar a todos os apegos (que causam invariavelmente sofrimento) e partir em busca da iluminação, com infinito amor e profunda compaixão por todos os seres sensíveis. É este amor ilimitado por todos os seres, esta capacidade extrema de os amar como se todos eles fossem a nossa mãe, que distingue uma experiência com verdadeiro sentido de apenas mais uma experiência. E é essa generosidade que é tão difícil. Habitualmente, tomamos decisões drásticas, aventuramo-nos por campos desconhecidos ou recolhemo-nos no silêncio da leitura e da reflexão tão exclusivamente concentrados em nós mesmos que não compreendemos, mais tarde, o que é que falhou.

Gosto muito deste filme, talvez porque, entre outras coisas, me lembre histórias, contos e lendas, daqueles que eu lia em miúda, ou que via nos desenhos animados. É certo que o final dessas narrativas era sempre feliz, ou pelo menos o herói não morria. Mas há na história da odisseia de Christopher McCandless algo de arquetípico que é explorado e desenvolvido com grande mestria pelo realizador Sean Penn. Esta é uma história de vida naquele sentido mítico de crescimento e aquisição de sabedoria pela escolha do caminho mais difícil e menos percorrido. Pela viagem, pela solidão, pela mais radical tentativa de liberdade, pela superação de obstáculos, pelos encontros fortuitos, pelos trabalhos vários. É uma jornada de auto-descoberta, que culminará na iluminação interior, correspondente à morte física.

O filme baseia-se na história verídica de Christopher McCandless, sendo uma adaptação do livro de Jon Krakauer, Into the Wild. Um jovem recém-licenciado de 22 anos, de classe média-alta, atlético e bem sucedido nos seus estudos universitários de História e Antropologia (especialmente em cadeiras que abordam as desigualdades sociais e a pobreza e fome em países subdesenvolvidos), leitor voraz de autores como Jack London, Thoreau e Tolstoi, com um bom fundo de poupanças para prosseguir a sua formação na Harvard Law School, revoltado contra a hipocrisia quer dentro da sua família (diz dos seus pais que they are living their lies) quer nas sociedades - resolve destruir todos os seus cartões de crédito e de identificação e doar o seu dinheiro à confederação Oxfam, uma instituição internacional de caridade. Adopta o nome Alexander Supertramp (Supervagabundo) e parte num velho Datsun B210 em direcção ao selvagem Alasca, sem informar, nem voltar a contactar, a família.

O carro acompanhá-lo-á apenas por uma curta parte do trajecto. Durante 2 anos, Supertramp viajará à boleia ou ilegalmente nos comboios das grandes linhas (na esteira do seu herói Jack London), será acolhido e alimentado por desconhecidos com que se cruza, para sobrevivência terá diversos biscates, desde trabalhador agrícola a funcionário num restaurante de fast food. Curioso por todas as pessoas e por todas as artes, apaixonado pela natureza, é um rapaz que encanta todos, talvez pelo seu desprendimento e idealismo. Finalmente, chegará ao destino da sua viagem, o Parque Nacional Denali, no Alasca, onde passados 4 meses acabará por morrer de inanição, supostamente pela ingestão de raízes de plantas ou sementes nocivas.

Os filmes remetem-nos sempre para outros. Neste caso, lembrei-me do documentário de Werner Herzog, Grizzly Man, sobre a vida e a morte de um ambientalista e investigador de ursos pardos que, devido à sua temeridade e desrespeito pelas fronteiras entre o humano e o selvagem, acaba por morrer às garras do seu objecto de estudo.

A Supertramp falta-lhe o amor, a compaixão e a gratidão pela sua condição de humano e pela humanidade. Afinal, será graças aos seus irmãos humanos que sobreviverá até chegar ao destino, e entre os animais selvagens não há a retribuição do amor. A natureza é bela, mas implacável, e não conhece a doçura da empatia nem da piedade. O eterno combate pela sobrevivência é a sua força motriz.

Daí que partir só para a vastidão da natureza, numa renúncia egoísta do mundo civilizado e da sociedade, não seja de facto uma renúncia com sabedoria. A renúncia verdadeiramente espiritual é a do apego por si próprio e não a renúncia da humanidade. E renunciar não tem de ser a antítese de amar. Amar é, na verdade, um exercício de liberdade. Durante o lento progredir da morte, num processo que quase parece de mortificação, lembrando-se da família e dos seres bondosos que foi encontrando no seu caminho, Supertramp acabará por compreender que não é possível ser feliz sem amar os outros e sem ter a generosidade de aceitar o amor que eles têm para nos dar. E a tão procurada nobre verdade que o nosso herói descobre é a de que a felicidade só é real quando partilhada e de que não é possível fugir, isolando-se, da interdependência entre todas as coisas.

E assim foi o seu nirvana.