Her


Joaquin Phoenix (Theodore) e Chris Pratt (Paul) no filme Her, realizado por Spike Jonze, 2013.
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Gosto de deambular e de observar as pessoas. Diverte-me sobretudo observar as que falam ao telefone através de auriculares. Parecem doidinhas. Falam para o ar, esbracejam, riem-se ou zangam-se aparentemente sozinhas. Dentro dos seus carros, ao volante, também ficam caricatas. Já me aconteceu várias vezes pensar que me estão a fazer sinais por alguma razão. Nada disso. Estão energicamente à conversa com alguém invisível e inaudível para mim. Também é comum vê-las, na plataforma do metro ou na paragem de autocarro – em lugares onde se tenha de esperar –, totalmente imersas no universo dos seus iphones e afins.

Por isso, não foram difíceis de conceber como uma realidade próxima as imagens da população de uma Los Angeles futura que surgem neste filme. As pessoas, em geral, não falam umas com as outras, falam apenas com o sistema operativo que lhes organiza as vidas (lendo, apagando ou respondendo a mensagens electrónicas; lendo as notícias do dia; escolhendo música segundo a disposição do seu proprietário; etc), através de um auricular. O guarda-roupa, rétro-futurista, coincide de certa forma com o fenómeno de moda rétro que vivenciamos actualmente: Theodore, o nosso protagonista, usa calças de cintura alta, óculos de aro grosso, bigode, camisas sem colarinho… Todo o cenário é minimalista e de cores desbotadas, não há grandes extravagâncias futuristas, para além daquelas que evidenciam o progresso tecnológico.  O regresso à simplicidade é uma reacção humana ao desenvolvimento tecnológico global – aqui, na nossa vida atual, e ali, na vida do filme.

Theodore é um homem simpático, tímido, doce, que não abafa o seu lado feminino – qualidade que este explora e que se revela na arte da sua profissão: escrever cartas de amor, de carinho, de amizade para os outros; frequentemente num jogo de travestismo literário. Trabalha numa empresa, BeautifulHandwrittenLetters.com, que presta serviços de ghostwriting a pessoas que têm dificuldade em escrever os seus sentimentos. Um software topo de gama “digitaliza” o ditado de Theodore e processa-o numa carta manuscrita aparentemente autêntica. Quer a criação de Theodore, quer a caligrafia da carta baseiam-se em material prestado pelos clientes: fotografias, relatos, notas escritas. Devo confessar que fiquei com vontade de iniciar um projecto destes – haverá procura?

Eis senão quando surge um novo sistema operativo, dotado de inteligência artificial, para executar aquelas tarefas analógico-digitais de organização de vida numa era tecnológica, ao jeito de secretário pessoal-pessoalíssimo.

Theodore compra-o, usufrui e apaixona-se.

É interessante resumir a situação desta forma crua, porque remete-nos imediatamente para o universo consumista em que vivemos, tornando-se esta história de amor tecno numa sátira social e cultural. A verdade é que as pessoas têm cada vez mais um relacionamento exótico, quase-amor,  com as coisas que adquirem, que consomem, que possuem, como se só lhes faltasse de facto fazer sexo com as coisas e como se as coisas passassem elas próprias a possuir as pessoas. E nesse sentido, a história deste filme pode também ser interpretada como uma análise docilmente crítica deste fenómeno de consumismo descontrolado e despersonalizante.

Theodore compra este novo sistema operativo, escolhe que tenha uma voz feminina – e encaminha-se fatalmente para as portas do amor ideal.

Samantha é o espectro de mulher que, através da sua rede neurónica artificial altamente complexa, satisfaz Theodore. Ela conhece-o de trás para a frente, pelo acesso total que tem ao disco rígido do seu computador e ao seu correio electrónico. Ela vai-se criando para ele. Durante o filme, diz várias vezes que está a crescer com ele, mas na verdade está a reprogramar-se constantemente pelo processamento da informação que vai inserindo na sua memória artificial, e essa informação, que é toda uma vida vivida e sentida por Theodore, não ocupa muito mais do que alguns bits no cérebro intricado de Samantha.

E esta é a mulher ideal. É inteligente; é divertida; é sensual; é dotada em diversas artes, desde a composição musical ao desenho; é compreensiva; é obediente; é eficiente; é rápida; é descomplexada; é indulgente; é romântica; é desapegada; é fisicamente perfeita, pois o seu físico corresponde exactamente ao que cada um queira imaginar como perfeito.

Por outro lado, ela é a mulher ideal para Theodore porque, tendo absorvido toda a informação pertinente sobre a sua personalidade, sabe corresponder àquilo que ele espera.

E aqui tocamos num outro aspecto de observação psicológica e social de importância na subtrama do filme: o drama das relações amorosas. Tudo, no fundo, desagua na necessidade de posse que o ser humano tem. Mas um ser humano não pode possuir outro, além do estado metafórico que é a fusão sexual – e que é sempre efémero. Devido ao desejo de possuir, é frequente que numa relação amorosa um tente mudar o outro e vice-versa, de forma a que este corresponda melhor ao que aquele quer e vice-versa. E é assim que as relações se deterioram.

Então, não há nada como encontrar alguém que nos permita amar-nos a nós próprios, num exercício sempre agradável de narcisismo.

E quanto mais não seja fica esta mensagem de humildade para nós simples seres humanos:

Theodore – You seem like a person but you’re just a voice in a computer.
[Pareces uma pessoa, mas és só uma voz no computador]

Samantha – I can understand how the limited perspective of an unartificial mind might perceive it that way.
[Eu consigo compreender como a pespectiva limitada de uma mente não-artificial possa apreendê-lo dessa forma]