La Vie d' Adèle




Não é muito comum sentir vontade de escrever um texto sobre um filme. Ultimamente, nem tem sido comum escrever sobre o que quer que seja. Mas vou escrever sobre o filme La Vie d’Adèle, o que só por si já revela a impressão profunda que me causou.

Passei o domingo passado com a minha avó, e sempre que a visito aproveito para ver televisão. Enquanto almoçávamos fomos vendo o telejornal, e recordo uma notícia sobre umas senhoras da Trofa que fazem brinquedos de madeira. Todos os dias, uma senhora mais velha lá da terra passa pelo atelier onde elas trabalham e aquilo é um momento importante do seu dia. Ora a dada altura a velhota diz algo do género: “Quando elas não estão aqui e o atelier não está aberto, eu acho-as de menos.” Fiquei encantada. Nunca tinha ouvido este empréstimo da expressão espanhola  “echar de menos”. A minha mente linguística começou logo a refletir sobre o processo engraçado de criação analógica (também conhecido por etimologia popular, ou, neste caso - aportuguesamento) que sucedeu nesta passagem do espanhol “echar” para o português “achar”. É o mesmo processo que cria palavras populares como “tamparware” (por “tupperware”) ou “ervadose” (por “overdose”)… Bom, mas fiquei a matutar nesta expressão, quer na original quer na sua bela correspondente portuguesa; senti esse sentimento de menos – é algo que reconheço.

Numa das cenas inicias do filme La Vie d’Adèle, na escola durante uma aula de literatura francesa, voltei a ser acometida pelo “achar de menos”. Em análise: a obra de Marivaux, La Vie de Marianne (inspiração quer para o título quer para a narrativa do filme). O professor questiona a turma sobre um sentimento descrito num trecho do romance, quando Marianne vê o jovem Valville, sentindo algo tão diferente do costumado pelos outros rapazes, ela sente “algo de menos no coração”:

Enfin on sortit de l'église, et je me souviens que j'en sortis lentement, que je retardais mes pas; que je regrettais la place que je quittais; et que je m'en allais avec un coeur à qui il manquait quelque chose, et qui ne savait pas ce que c'était.

Por fim, saímos da igreja, e lembro-me que eu saía lentamente, que demorava os meus passos; que me pesava partir daquele lugar; e que seguia com um coração a que faltava qualquer coisa, sem saber o que era.

Pois o que senti quando acabei o filme foi precisamente este menos; entre o impulso irracional da insaciedade e o raciocínio consciente de que não é possível a saciedade através das paixões, quer sejam elas por pessoas, por animais, por filmes, por viagens, por livros… Fica sempre um achar de menos, inerente à transitoriedade desses estados.

A história não podia ser mais simples, nem mais previsível. O que se desenrola perante nós é um trecho da vida de uma adolescente que está a crescer (o que em inglês sói chamar-se uma “coming of age story”) e que corresponde mais ao menos àquele trecho do livro de Marivaux. A própria Adèle, depois de ter acabado a relação com o namorado e desabafando sobre o assunto com o seu melhor amigo, confusa e como que inapta para compreender o seu estado, em lágrimas diz: “il me manque un truc” (falta-me qualquer coisa).

Na verdade, eu senti que estava mais a ler este filme, do que a vê-lo. E daí não me chocar a famosa cena de sexo de 7 minutos, muito criticada e, entre outras questões, centro da polémica que gira em torno deste filme, apelidada por muitos de “cena pornográfica”. 



Ora, só interpreta desta forma uma tão envolvente cena de amor quem tem muitos problemas psicológicos, culturais e sociais e sofre de muitas repressões (auto ou extra impostas), ou seja – grande parte da população humana. Daí que sejam perigosos os referendos.

Como dizia, esta história não podia ser mais simples. E é em toda a sua simplicidade, naturalidade, espontaneidade – que a lemos e sentimos. E nesse aspeto esta é uma verdadeira tragédia, porque a catarse do espectador é inevitável. É impossível não nos revermos e não nos sentirmos enquanto lemos e analisamos este trecho da Vie d’Adèle, na medida em que este é um retrato de sentimentos e emoções universais. Não é preciso ser homossexual para se reconhecer a ansiedade, o desejo, a necessidade, a dor, a dúvida, o ciúme, o medo, a confusão que levam Adèle a agir sem saber bem o que faz, síndrome de que já padeciam os heróis trágicos nas tragédias gregas antigas... Por alguma razão, para além da Vie de Marianne de Marivaux, outra obra que vemos ser analisada numa outra aula é a Antígona de Sófocles, onde se aborda a emancipação de uma jovem que se torna uma mulher e a sua responsabilidade, bem como a predestinação e o fatalismo, temas estes que subtilmente reemergirão na nossa mente quando Emma diz a Adèle “não existem acasos” e nós começamos a encarar a relação de ambas como algo fatalmente predestinado e que com certeza acabará mal… 

E eis porque não consigo ver este filme como um filme gay nem encontrar nele clichés de um amor homossexual. Que clichés? Talvez os habituais, em qualquer filme romântico e nos próprios romances das nossas vidas, ou que criamos nas nossas vidas. Um cliché é, por exemplo, um beijo com o sol por trás, mas esse cliché é apanágio do cinema romântico no geral, e não será apenas do cinema romântico gay





Cena final do filme Orgulho e Preconceito, realizado por Joe Wright, 2005.
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Há também quem diga que a personagem da Adèle é muito estereotipada, como representante de uma classe média-baixa, porque come de boca aberta, leva a faca à boca, lambe os dedos no fim da refeição, está sempre ranhosa, e sei lá o que mais. A essas pessoas, aconselho-as a ver entrevistas da actriz, para perceberem que tudo isso são traços do carácter expansivo da própria, que ‘por acaso’ se chama Adèle.  



Como já acontecia no livro La Vie de Marianne, em que o escritor desaparece da sua obra para deixar falar a própria Marianne, assim acontece neste filme. O realizador Abdellatif Kechiche, franco-tunisino, que realizou este filme imbuído do espírito da Primavera Árabe, utilizando estratégias mais ou menos discutíveis, enche o filme da pele das suas protagonistas, especialmente da Adèle. Isso é tão notável e notório, que a Palma de Ouro de Cannes foi atribuída aos três. E é-nos dada esta possibilidade de entrar pela vida adentro desse ser generoso, que é Adèle, que se abre toda para nós. Os diálogos ternos, simples, banais, leves, naturais, bem-humorados (que a meu ver sobressaem mais do que as esporádicas conversas filosófico-intelectuais do núcleo social e cultural da Emma): com as colegas na escola, com o seu pretendente no autocarro, com a Emma no bar, com a Emma no jardim (Sartre versus Bob Marley!), com o actor de filmes de acção durante a festa da Emma; as refeições à mesa com os pais; vê-la dormir; a festa dos seus 18 anos; os momentos na escola primária com as crianças; a dança com o colega com quem acaba por ter um caso; o banho no mar durante a colónia de férias com os alunos – ficamos completamente envolvidos por e numa vida. O tempo passa sem darmos por ele, como acontece na vida. E mesmo as nossas vidas têm clichés.