Aguarela minha, a partir da aguarela de Mário Botas "A Moradas Filosofais", 1980.
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Há vários autores que me têm acompanhado ao longo dos anos e que são como que abastecedores contínuos de inspiração na minha vida, qualquer que seja o período por que esteja a passar. Um deles, e que me acompanha desde os 18 anos, é Kafka. Kafka dizia que tudo o que não era literatura lhe era penoso e insuportável. E eu encontro e compreendo bem essa angústia, quando leio-vivo romances geniais como O Castelo ou O Processo, e mergulho nessa perfeitamente elaborada e envolvente realidade alternativa que ele criou nas suas narrativas, um mundo literário que substitui a pobreza do mundo real, que o desdobra e aprofunda num misto de absurdo e transcendência.

Há cerca de 5 anos que tenho “perdido países” (piscadela de olho a outro dos meus fiéis abastecedores: Fernando Pessoa). Peguei na mala de cartão, enxotei alguns medos e fui trabalhar para o estrangeiro. Se me perguntam por que o fiz, talvez a resposta mais fácil fosse “porque em Portugal não tinha condições para trabalhar”. Mas não foi por isso. Tanto que, agora que Portugal está à beira de uma apoplexia política, social e, claro, económica, eu até penso em voltar. Fi-lo porque desconfiava que se não o fizesse seria sempre muito ignorante acerca de mim própria e do mundo e facilmente presa do medo e da insegurança. Digamos que sentia que em Portugal não tinha as condições necessárias para me trabalhar a mim. Kafka resolveu esse problema emigrando para a Literatura, eu tento resolvê-lo emigrando para outros países – sou bastante menos criativa do que Kafka, admito.

A minha relação com o meu país é saudável, amorosa, saudosa – como habitualmente sucede nas relações à distância. Acrescente-se o facto de eu ensinar português a estrangeiros e, também por isso, manter, com fé e consciência, uma visão de Portugal apaixonada e folclórica, cheia de clichés como o Fado, o Pastel de Nata, o Galo de Barcelos e o Bacalhau.

Não sei se pela minha tendência metafórica, lendo na internet sobre a situação atual do meu país, teletransporto-me sempre para os cenários e contextos desolados dos romances de Kafka. Lembro, sobressaltada, o misterioso, invisível e todo-poderoso Conde West-West, o conde do Castelo no romance O Castelo, quando leio sobre a “Troika” internacional que vem em socorro do confuso e submisso Portugal, essas três cabeças de uma hidra – o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia (CE). O Conde West-West era apenas mencionado, nunca visto por ninguém, e o seu poder era incontestável. Sob si, pulsava uma máquina burocrática que, apesar de imensa e incansável, falhava. Os funcionários que mantinham a máquina em funcionamento eram uns imbecis que se limitavam a seguir e inventar ordens, regras e leis absurdas sem as colocar em questão, meditar sobre elas ou pensar no que faziam. E na base desta hierarquia, havia a população do burgo que norteava a sua existência segundo os decretos obscuros emitidos pelo Castelo, satisfeitos na sua mediocridade e seguros de que tudo o que vinha do Castelo tinha a sua razão própria, não aplicável às vidas mundanas dos seus servidores, tornando-se o Castelo e o Conde West-West uma abstração a que era preciso obedecer sem entender.

Embora leia a definição do que é o FMI, não consigo bem compreender. Há outras Entidades que não consigo compreender bem, embora estejam definidas em textos exaustivos e exerçam uma influência real no mundo e no destino das nações. Por exemplo, o que são as Organizações Não Governamentais? O que são as Agências de Rating? O que são os Mercados Especulativos? Para que servem, de facto? A meu ver, podiam muito bem ser algumas das famosas abstrações de Kafka, com a diferença de que as entidades superiores de Kafka são tirânicas pelo gozo de o ser, ao que parece, e para demarcar bem a fronteira entre quem tem poder e quem é uma marioneta desse poder; enquanto que estas outras, bem reais, que temos na nossa vida, são tirânicas para obter dividendos. Lendo sobre o FMI na Wikipedia: é uma organização internacional que pretende assegurar o bom funcionamento do sistema financeiro mundial pela monitorização das taxas de câmbio e da balança de pagamentos, através de assistência técnica e financeira. Então se esta organização quer assegurar o bom funcionamento das economias do mundo, porque não investe o seu capital humano e financeiro (advindo de todos os países-membros) na prevenção das crises económicas, em vez de, com o seu jeito paternalista, o investir – a título de empréstimo e com altos juros – no suposto tratamento, depois de elas já terem rebentado? Naturalmente, o tratamento dá mais lucro do que a prevenção. Os médicos e as indústrias farmacêuticas que o digam. Diabólico.

Sinto tristeza por saber que as cabeças da hidra vão penetrar em Portugal e sinto uma tristeza maior por me aperceber que isso vai acontecer porque os nossos políticos se preocupam mais com as suas guerrilhas internas e competições e com o seu orgulho pessoal do que com a soberania do seu país. Infelizmente, para além do colapso económico do nosso país, estamos sem governo e temos eleições antecipadas em Junho. A demissão de José Sócrates foi um triste número de animal ferido no seu orgulho e a oposição do PSD é tudo menos inteligente e frutífera, não fazendo nada mais do que atacar para destruir, sem criar alternativas que compensem as perdas. Por mais descontentes que todos estejamos com o governo do PS, esta não é a melhor altura para quem esteve no poder enquanto o país se endividava catastroficamente largar o leme em joguinhos infantis. Para a desgraça ser completa, só faltava mesmo que o PSD ganhasse as eleições em Junho! Cavaco Silva, Passos Coelho e a “Troika” internacional – com esta coligação do futuro é que os Homens da Luta iam ter muito que cantar.

Creio que está bem documentada a influência perniciosa que o FMI tem tido sobre outros países em crise, como na Argentina que, depois do seu colapso financeiro em 2001, seguiu as medidas extremamente austeras do FMI e acabou com um governo que não conseguia mais suportar a infraestrutura económica nacional em áreas cruciais como a saúde, a educação e a segurança pública. Em 2008, um estudo feito por investigadores das universidades de Yale e Cambridge concluiu que as condições severas para empréstimo de dinheiro impostas pelo FMI nos países em crise do Leste Europeu levou ao ressurgimento da tuberculose e a milhares de mortes causadas por esta doença, pois os governos começaram a cortar nas despesas dos serviços de saúde para atingir as metas económicas estabelecidas pelo FMI. Diabólico.

Causa-me repugnância este monopólio dos interesses económicos sobre valores basilares de qualquer democracia, como a solidariedade, a justiça, a igualdade; causa-me repugnância ver muitos países a serem governados não pelos seus dirigentes políticos, mas por uma hidra gigantesca, o núcleo duro dos países mais ricos e fortes, com as suas cabeças (organizações, instituições, agências de utilidade aparentemente pública, e em alguns casos até humanitária, mas servindo apenas os interesses da própria hidra) revolvendo sobre o corpo mole dos países mais pobres e frágeis – e crescendo e criando um fosso cada vez maior entre as potências económicas mundiais... e o resto.