de profeta a hipócrita...


 Sylvia Ji, «Catrina».
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Infelizmente, é verdade: já existiam hipócritas na Grécia Antiga! Mas não se chamava «hipócrita!» aos hipócritas de então, podia chamar-se, sei lá… 'pseústês' (enganador), ou outra coisa do género. Mas 'hupokritês' tinha um sentido muito diferente do atual!

É só no grego mais tardio, do período cristão (sécs. I-IV, mais século menos século), que a palavra vem a ganhar o significado de 'simulador, fingidor, falso', por influência do cristianismo.

A palavra é composta pelo prevérbio 'hupó' e pelo substantivo 'krísis'. Este substantivo deriva do verbo grego 'krínô' (equivalente ao verbo latino 'cerno', que sobrevive, por exemplo, no nosso verbo discernir), que significa 'separar, distinguir; escolher; decidir; resolver, explicar; julgar, estimar'.

Quanto à preposição e prevérbio 'hupó', expressa a direcção ou a posição inferior, com ideia de movimento – 'para baixo, para baixo de' – ou de imobilidade – 'debaixo'.

Então, fazendo um cocktail com os sentidos do prevérbio e do substantivo, podemos inventar os seguintes significados para o verbo 'hupokrínomai': 'separar em baixo', 'resolver debaixo', 'explicar para baixo'…

Sejamos agora um pouco mais razoáveis neste nosso exercício intelectual… O sentido do prevérbio terá de adaptar-se à realidade que se pretende expressar: quando falamos em distinção, decisão, escolha, juízo, falamos de actividades mentais, que requerem uma certa introspeção, assim sendo, 'hupó' vai intensificar o sentido de interiorização, ou seja 'para baixo, debaixo' traduzir-se-ão por 'para dentro, cá dentro'.

Depois do que já foi referido, não estranharão que o significado primitivo do verbo 'hupokrínomai', de que deriva o substantivo 'hupokrisía', seja o de 'explicar, fazendo sair a resposta do fundo de si mesmo'. Tendo em conta o processo intelectual de distinção, e consequente compreensão, associado ao verbo 'krínô', e a ênfase num movimento para dentro proporcionada pelo prevérbio 'hupó', torna-se menos estranho aquele significado e a relação do verbo com fenómenos interiores ou que exijam introspeção, como a interpretação de um sonho, a explicação de um oráculo...

Hipocrisia significava, para os Gregos antigos, uma 'resposta' (principalmente oracular), e, por extensão semântica, a 'réplica' que se dá durante uma peça de teatro, a 'interpretação de uma peça'. Daqui derivou para 'ação de desempenhar um papel; pantomina; declamação'.

O hipócrita era aquele que dá uma resposta, que interpreta sonhos, visões; um profeta, um adivinho. Mas também o que interpreta uma peça, um actor, um comediante, um imitador.

Deste último sentido derivou o significado actual da palavra hipocrisia, cujo cunho moral foi, como já se disse, gravado pela tradição cristã.