de solidão a saudade...


George de la Tour, «Maria Madalena», 1637.
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Saudade vem do substantivo latino 'solitate', que é uma espécie de variante de um outro, latino, muito mais usado pelos antigos Romanos: 'solitudo'. A diferença entre os dois é ténue, como nas nossas palavras 'solitude' e 'solidão; 'lassitude' e 'lassidão': sendo os primeiros termos de uso mais restrito, mais literário, expressando um alongamento rítmico que lhes proporciona um certo sabor poético.

Portanto, na raiz da nossa palavra 'saudade' está o sentido de 'solidão, abandono'.
E como é que de 'solitute' se passa a 'saudade'? Antes de mais, os pormenores técnicos: o -l- que está entre vogais é habitual cair, durante o processo de evolução das palavras latinas para as nossas actuais; e os dois -t-, que estão também entre vogais, por regra sonorizam, ou seja, deixam de ter o som surdo do [t] e passam a ter o som mais vivo e vozeado do [d]. Assim, temos a palavra 'soidade', que era como se dizia durante a Idade Média, em alternância com a forma 'suidade'. A partir do séc. XV, surge a forma 'saudade', que não respeita muito as habituais evoluções fonéticas. Há quem diga que foi por influência da palavra 'saúde' que tal aconteceu.

Quanto à evolução de sentido, já entre os Antigos se tinha processado: do sentido original de 'solidão' evoluiu para o de 'solidão de alguém, ser deixado sozinho por alguém, ser abandonado, ser isolado'. Daí, rapidamente ganhou os matizes que a palavra possui hoje em dia: o de falta, de carência, de ausência, já que aquele que é abandonado e isolado dos outros, ou do outro, vai, consequentemente, sentir a falta deles. Tito Lívio chegou a usar a palavra nesta aceção, num contexto mais específico: «solitudo magistratuum», diz ele, a certa altura da sua monumental história de Roma, ou seja, «há falta de magistrados».

Agora até percebemos melhor esta misteriosa palavra, e os seus sentidos ocultos. É uma palava que revela bem até onde nos levam os apegos - o nosso egocentrismo. Porque, de facto, a saudade não é só sentir a falta: é um sentimento que se confunde com a nostalgia (etimologicamente, "dor do regresso", associada ao afastamento da pátria), com o estar triste ou melancólico - às vezes sem causa aparente, às vezes sem objeto; e mesmo tendo objeto, como quando dizemos «tenho saudades do João", acentua-se mais a sensação de triste isolamento nosso, exílio doloroso - porque estar aqui sem o João é estar terrivelmente só e infeliz - do que propriamente a falta que essa pessoa nos faz.